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Uma Teoria Mágica

``É tal a magia desta teoria que quase ninguém que a compreenda adequadamente lhe consegue escapar."

Albert Einstein

Enquanto preparava um longo artigo de revisão em 1907, sobre a sua teoria da relatividade restrita, Einstein começou a interrogar-se sobre a forma de modificar a teoria newtoniana da gravitação de modo que as suas leis pudessem conciliar-se com a nova teoria. Nos anos que se seguiram Einstein continuou esta pesquisa sózinho até que em 1913 benificiou da colaboração de Marcel Grossmann que o ajudou a desvendar os mistérios da geometria riemanniana. Juntos produziram dois artigos, o último dos quais foi publicado em 1915. Na sua forma final a teoria foi construida unicamente por Einstein e publicada na revista Berliner Berichte num conjunto de quatro artigos com datas de 4, 11, 18 e 25 de Novembro de 1915.

Os dez anos seguintes foram anos de recepção, afirmação e sucesso da teoria. Em 1918 surgiram os primeiros dois livros devotados à relatividade geral, um em Londres por Eddington, e outro em Berlim por Herman Weyl. A 29 de Maio de 1919 o encurvamento dos raios luminosos rasando o Sol foi medido na Ilha do Príncipe e no Sobral (Brasil) durante um eclipse solar, graças ao zelo de Eddington e do Astrónomo Real britânico Frank Dyson. As previsões da teoria de Einstein foram publicamente confirmadas no famoso encontro da Royal Society em Londres a 6 de Novembro de 1919. No dia seguinte, no cabeçalho do jornal londrino Times podia ler-se: ``Revolução na Ciência/ Nova Teoria do Universo/ Ideias Newtonianas Abandonadas."

A Primeira Guerra Mundial tinha terminado. O mundo estava cansado e desiludido, e à procura de novos ideais. A teoria de Einstein com as suas ideias bizarras sobre a curvatura do espaço(-tempo) captou a imaginação da opinião pública, embora muito poucas pessoas a compreendessem. Apareceram então inúmeros artigos de divulgação em jornais e em revistas filosóficas que entusiasmaram o público culto e tornaram a relatividade num tema de conversação obrigatório. O próprio Einstein escreveu um longo artigo no Times em finais de 1919, procurando explicar a teoria aos leigos. Na capa da revista noticiosa Berliner Illustrirte de 14 de Dezembro de 1919 a sua fotografia é publicada com a legenda: ``Uma nova grande figura da história mundial." Einstein torna-se então um pensador célebre em todo o mundo e a sua opinião é solicitada para os mais variados assuntos. Os Estados Unidos recebem-no com pompa e circunstância e o seu nome passa a ser pronunciado com reverência, acabando por adquirir o significado do génio. Nem todos, porém, aplaudiram o triunfo de Einstein. Alguns membros da comunidade científica e outras pessoas movidas por razões mais políticas do que científicas moveram-lhe uma guerra sem quartel, afirmando que a sua teoria era totalmente incompreensível e inútil.

Ironicamente, enquanto a lenda de Einstein e da sua teoria crescia, a investigação em relatividade geral tornava-se estéril e estagnava. Na opinião da maioria dos físicos, no período entre 1925 e 1955-grosso modo-a teoria marcou passo.

``Lembro-me que durante a minha lua de mel em 1913, levava na minha bagagem alguns exemplares dos artigos de Einstein que me absorveram durante horas, para grande consternação da minha mulher. Esses artigos pareceram-me fascinantes, mas difíceis e quase assustadores. Quando reencontrei Einstein em Berlim em 1915, a teoria tinha sido aperfeiçoada e coroada com a explicação da anomalia do periélio do Mercúrio, descoberta por Leverrier. Compreendi-a então, não só graças às publicações mas também através das numerosas discussões com Einstein-o que teve como efeito que eu decidisse nunca mais empreender qualquer trabalho nesse campo. Os fundamentos da relatividade geral pareceram-me então, e ainda hoje, o maior feito do pensamento humano sobre a Natureza, a mais espantosa associação de penetração filosófica, de intuição física e de habilidade matemática. Mas os seus laços com a experiência eram ténues. Isso seduziu-me tal como uma grande obra de arte que se deve apreciar e admirar à distância."

Esta foi a forma como o físico alemão Max Born, durante o primeiro congresso de relatividade geral realizado em Berna em 1955, evocou as suas relações com a teoria de Einstein. Este texto, melhor que qualquer longo preâmbulo, descreve em grossas pinceladas o verdadeiro lugar da relatividade geral enquanto teoria física na instituição científica entre o princípio dos anos vinte, altura em que a teoria é reconhecida, e o início do seu renascimento que se pode situar, simbolicamente, em 1955-ano da morte de Einstein. Das palavras de Born ressaltam três aspectos que gostaria de analisar mais pormenorizadamente: a beleza, a dificuldade e a fraca ligação com a experiência.

``A teoria da relatividade exerce uma atracção singular por causa da sua consistência interna e da simplicidade dos seus axiomas" escreve Einstein no prefácio do livro do seu colaborador P.G. Bergmann-Introduction to the Theory of Relativity. Simplicidade lógica, tal é uma das palavras chave da questão relacionada com a escassez de parâmetros, o que segundo Karl Popper implica a alta improbabilidade a priori duma teoria científica ou ainda a sua grande refutabilidade. Na verdade, a relatividade geral, como não possui parâmetros livres-com excepção da constante cosmológica tex2html_wrap_inline677 , que não é um parâmetro essencial da teoria-tem pouca elasticidade para fazer face a numerosos testes experimentais ou observacionais. É uma teoria extraordinariamente rígida e altamente refutável, ao contrário das chamadas ``teorias alternativas" do campo gravítico, que dispõem de parâmetros ``ajustáveis" aos resultados de observação. Neste sentido, a relatividade geral é uma boa teoria segundo Popper.

Parte da magia desta teoria reside precisamente na beleza da sua consistência interna, o que leva muitos relativistas a considerá-la como o modelo por excelência de teoria física. Assim será ela considerada por Bergmann ``o mais perfeito exemplo de teoria do campo até agora conhecido", para Hermann Weyl é ``um dos mais belos exemplos do poder do pensamento especulativo" e, segundo Paul Langevin, ``Não temos actualmente nada que se lhe possa comparar do ponto de vista [físico], e menos ainda do ponto de vista da beleza interior, da necessidade lógica e da fidelidade ao que a física deve ser, uma construção lógica sobre uma base exclusivamente experimental".

Mas alguns relativistas não esquecem o essencial. Por exemplo, Lanczos recorda-nos que: ``Nem a harmonia interna, nem a satisfação que uma tal teoria oferece podem servir de critérios da sua validade. Trata-se só de saber quais são as consequências que se podem tirar para a observação e como estas consequências podem ser verificadas pela experiência. A teoria da relatividade geral não desempenha aqui um papel diferente de qualquer outra teoria". É, portanto, conveniente distinguir entre a validade da teoria e a satisfação lógica que a sua harmonia interna produz nos seus praticantes. Porém, isso nem sempre aconteceu. Por exemplo, Bergmann ao introduzir no seu livro o capítulo sobre os ``testes experimentais" escreve, ``os argumentos mais convincentes a favor da teoria da relatividade geral permanecem, contudo, até ao presente teóricos". E o próprio Einstein escreve em 1930, ``Não considero que o principal significado da teoria da relatividade geral seja a previsão de alguns pequeníssimos efeitos observáveis, mas antes a simplicidade dos seus fundamentos e a sua consistência". Como se podem compreender estas posições? Tratar-se-á de um entusiasmo mal controlado dos defensores da teoria? É possível encontrar uma explicação plausível. Assim, é mais razoável pensar que as afirmações anteriores foram produzidas numa atitude defensiva que procura implicitamente compensar a falta de argumentos da teoria da relatividade geral no plano empírico, e que embora não dê à estrutura interna um papel prioritário, tende a fazer ressaltar os aspectos teóricos. Einstein estava aparentemente convencido da validade da relatividade geral e acreditava que as experiências confirmariam o que ele já conhecia.

Por vezes o tema da estrutura lógica da teoria de Einstein desliza para uma discussão sobre a estética da relatividade geral. Elegância, harmonia, beleza interior, todas juntas ou cada uma de per si, é a expressão da sedução que a teoria exerce sobre os seus praticantes que não escondem o prazer que encontram numa teoria bem estruturada. Efectivamente, se os relativistas retornam tão frequentemente a este tema da estética, é sem dúvida porque a relatividade geral é verdadeiramente bela e eles são tão sensíveis à sua beleza. Porém, Einstein nunca gostou que se falasse da elegância da teoria nem recorreu a conceitos estéticos para a classificar. Os aspectos que lhe eram caros eram a simplicidade e a consistência interna. Embora se possa interpretar esta atitude dos relativistas de valorizar os aspectos teóricos como uma compensação para a escassez de resultados experimentais, deve reconhecer-se que o prazer estético é a justo título uma razão suplementar para trabalhar em relatividade, tanto mais que esta é uma área onde a magreza dos resultados concretos dificilmente justifica por si só o empenhamento dos seus praticantes.

Deve reconhecer-se que o argumento estético é uma arma de dois gumes e algumas vezes foi usado sob uma forma pejorativa. Como dizia o astrofísico relativista Subrahmanyan Chandrasekhar num artigo sobre a história da disciplina, ``a descrição do trabalho de Einstein como uma obra de arte é muitas vezes a máscara sob a qual os físicos se escondem enquanto negam a pertinência da relatividade geral para o avanço da física". É uma constatação que se apoia por exemplo na frase de Rutherford: ``Para além da sua validade, a teoria da relatividade geral só pode ser considerada como uma magnífica obra de arte". Assim, é ao nível da sua fecundidade, e ``para além da sua validade", que a relatividade geral é condenada. Pois se a relatividade geral não passa de ``uma obra de arte", é porque os seus praticantes são artistas que produzem ideias, talvez magníficas, mas muito pouco úteis. Uma acusação mais moderada feita por alguns físicos aos seus colegas relativistas é a de os considerarem matemáticos pois nenhuns outros cientistas são sensíveis à estética.

A teoria de Einstein foi considerada por vários cientistas como sendo de muito difícil acesso. É conhecida a bazófia de Eddington, contada por Chandrasekhar, a propósito do mito que se criou em torno da dificuldade da teoria. À saida de um encontro onde foi apresentar os resultados da expedição que tinha ido observar o eclipse de 1919, um colega comentou, ``Professor Eddington, você deve ser uma das três pessoas no mundo que compreende a relatividade geral!", Eddington fez um ar pensativo mas manteve-se calado. O colega insistiu, dizendo,``Não seja modesto, Eddington." Eddington replicou, ``Pelo contrário, estou a tentar descobrir quem é a terceira pessoa". Em geral, foram físicos muito respeitáveis que se referiram explicitamente a esta questão. Podemos citar os nomes de Born, Paul Ehrenfest, Max von Laue e J.J. Thompson entre os que fizeram declarações que contribuiram para a reputação de incompreensibilidade desta teoria. Note-se a este propósito que, como dizia Born, se trata ``de uma teoria nova, revolucionária. É necessário um esforço para assimilá-la." Acrescente-se que é uma teoria que utiliza uma maquinaria matemática que até aquela data nunca tinha sido usada em física e que, portanto, exigia um investimento particular que nem todos estavam preparados para fazer.

Este facto explica em parte o isolamento da relatividade geral que nos anos até ao seu renascimento desenvolverá laços infinitamente ténues com as restantes teorias físicas. Falta acrescentar que na vanguarda dos seus desenvolvimentos a relatividade geral porá--como qualquer outra teoria--aos seus especialistas problemas bastante difíceis e são muitos os relativistas que se lamentam deste facto. Este aspecto deve relacionar-se com a questão da fecundidade da teoria. Deve também ter-se em conta nesta apreciação as dificuldades conhecidas no campo observacional bem como as desvantagens desta teoria face às outras. Efectivamente, ao contrário da teoria newtoniana que teve pela frente um campo de acção quase virgem, ou da relatividade restrita e da mecânica quântica que encontraram situações bem mais simples, o quadro em que se desenvolveu a relatividade geral foi mais limitado e complexo. Mas é claro que as dificuldades que a teoria afrontou não têm muito a ver com a sua pretensa incompreensibilidade.

Pode concluir-se que a suposta incompreensibilidade da teoria de Einstein não é mais que o reverso da sua fraca fertilidade, o golpe baixo dos que não tendo o desejo de investir nela, não tendo nela nenhum interesse próprio, e complexados por não a compreender realmente acusam-na de ser uma teoria incompreensível. É uma acusação envenenada que visa a clausura da teoria e dos seus especialistas fechados numa linguagem hermética. O tema da dificuldade é, portanto, utilizado de uma maneira análoga ao da estética. Assim, a fraca ligação que a relatividade geral mantém com os ``verdadeiros" problemas da física colocam-na, por algum tempo, do lado da arte pela arte. Mas convém salientar que, ao longo da sua história, a relatividade geral nunca foi seriamente posta em causa e acabou sempre por se revelar mais respeitável e melhor no campo das observações que todos as outras concorrentes. Mesmo assim os relativistas são unânimes em deplorar as dificuldades associadas à observação--e não experimentação--dos efeitos previstos pela teoria, que limitam seriamente a repetição e o controle dos testes que a permitem verificar. Este é um tema recorrente na literatura relativista e uma preocupação lancinante do próprio Einstein. Entre o eclipse de 1919 e a experiência de Pound e Rebka em 1960, que marca o início do renascimento da teoria, apesar das numerosas tentativas que foram feitas para aplicar a relatividade geral a outros problemas, como a aceleração da Lua, o deslocamento da órbita de Marte, os efeitos de lente gravitacional, o movimento do periélio da Terra, sem falar do campo cosmológico, o estatuto empírico da teoria manteve-se limitado aos três testes clássicos: o avanço do periélio do Mercúrio, o encurvamento dos raios luminosos e o deslocamento das riscas espectrais. Para isso contribuiram as limitações tecnológicas da época, por um lado, e por outro a enorme proximidade da teoria de Newton, que após dois séculos de hegemonia, só deixa às suas concorrentes uma margem ínfima para se afirmarem empiricamente. Neste sentido, pode dizer-se que a relatividade geral reformulou a física clássica e, em particular, revolucionou a gravitação sem dispor de um verdadeiro campo póprio acessível. Isto colocou-a numa posição desconfortável, pois isolou-a do resto da física ao mesmo tempo que a tornou uma referência obrigatória dos filósofos da ciência e a afastou do centro de interesse dos físicos.

No congresso de Berna de 1955, das trinta e quatro conferências só uma será reservada aos resultados observacionais. Na homenagem que J.R. Oppenheimer escreve na revista Review of Modern Physics por altura da morte de Einstein lê-se:

``Nos quarenta anos que decorreram [estes três testes] permanecem a principal e, com uma excepção, a única ligação entre a relatividade geral e a experiência. A excepção reside no campo cosmológico."

É já no final dos anos cinquenta que este quadro começa a sofrer uma inversão e entre aqueles que para isso contribuiram avulta o nome do físico americano Robert Dicke. Dicke chega à relatividade com a firme intenção de remeter a teoria de Einstein ao campo experimental e denuncia com vigor ``a indigência da prova experimental" e como ``uma coisa aflitiva [...] a falta de contacto com a observação e com os factos experimentais." É neste quadro que se pode compreender o entusiasmo e a esperança provocados pela experiência de Pound e Rebka que, graças ao efeito de Mossbauer recentemente descoberto, vem verificar - a 1% ! - o terceiro teste. No ambiente de euforia que rodeou esta boa nova A. Schild dirá no American Journal of Physics:

``Eis que se aproximam dias excitantes: a teoria da gravitação de Einstein, a sua teoria da relatividade geral de 1915, passou do reino da matemática ao da física. Após 40 anos de reduzidos resultados astronómicos, novas experiências terrestres se revelam possíveis e estão a ser projectadas."

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Paulo Crawford
Sat Apr 10 16:51:20 GMT 1999