O Prémio Nobel da Física 2006


John Mather and George Smoot

A Academica Real das Ciências sueca decidiu atribuir este ano o  Prémio Nobel da Física a John C. Mather, astrofísico do Laboratório de Cosmologia Observacional do Centro Goddard de Voos Espaciais da NASA, em Maryland, e a George F. Smoot, astrofísico e cosmólogo observacional no Laboratório Lawrence e professor de física da Universidade da Califórnia, em Berkeley, pelas suas contribuições para o esclarecimento da natureza e das anisotropias da radiação cósmica de fundo (RCF) que banha o universo.

Mather e Smoot trabalharam juntos na construção e no lançamento em 1989 do satélite da NASA Cosmic Background Explorer (COBE) destinado a observar os sinais residuais da explosão primordial – o Big Bang, que teria ocorrido cerca de 14 mil milhões de anos atrás. Em Abril de 1992 anunciaram a detecção dos mais antigos vestígios do calor residual dessa explosão e, além disso, a descoberta que iludiu os cientistas durante décadas, a existência de variações de temperatura da RCF, relíquias fósseis da explosão primordial que deu origem ao universo, e indicativas das suas primeiras estruturas. “Essas medidas vieram confirmar a nossa representação do Big Bang”,  segundo George Smoot. “Ao estudar  as flutuações da RCF de micro-ondas, encontrámos o instrumento que nos permitiu explorar o universo primordial, ver como evoluiu e de que é feito.”

 

O Big Bang e a Expansão do Universo 

 

 

Recordemos brevemente as observações astronómicas que foram determinantes para o estabelecimento do modelo do  universo em expansão. A este modelo seria dado depreciativamente o nome Big Bang, pelo cosmólogo inglês Sir Fred Hoyle, nos finais dos anos 40, num programa de rádio da BBC, para acentuar o que lhe parecia ser uma consequência grotesta da relatividade geral – uma colossal criação de matéria e energia a partir do nada.

 

A primeira, e mais relevante, observação é com certeza a chamada lei de Hubble que descreve o afastamento das galáxias distantes com velocidades proporcionais às suas distâncias: v=H0d. Nesta fórmula v é a velocidade de recessão da galáxia, d é a distância à Via Láctea e H0 é a “constante” de Hubble no instante em que fazemos a observação. É esta lei que permite atribuir uma dinâmica ao universo e nos leva a afirmar que o universo actual está em expansão. É uma lei empírica, mas que se pode deduzir por via teórica no âmbito da cosmologia relativista saída da teoria de Einstein da relatividade geral.

 

 

Como H tem as dimensões físicas do inverso do tempo, a partir do seu valor actual podemos estimar a idade aproximada do universo. Admitindo uma taxa de expansão constante, o tempo dado por tH=1/H, a que chamamos “tempo de Hubble”, dá-nos uma ordem de grandeza da “idade do universo. Infelizmente não conhecemos o valor de H com exactidão. As medidas actuais de H fornecem resultados compreendidos entre 60 e 85 km por segundo e por megparsec – o megaparsec (Mpc) equivale a 3,26 milhões de anos-luz, ou 30.800.000.000.000.000.000 km! Por outras palavras, isto significa que uma galáxia que se encontre à distância de 1 Mpc se afasta de nós com uma velocidade que pode estar compreendida entre 60 e 85 km por segundo, consoante o valor de H que tomarmos.  Mais precisamente, devemos entender que é o próprio espaço que se expande com essa velocidade no momento de observação. E quanto maior for a distância entre as galáxias maior será a velocidade de expansão do espaço, sendo esta independente da direcção de observação, de acordo com os modelos tradicionais de Big Bang. Para a gama de valores da constante de Hubble referida a idade universo situa-se entre 11,5 e 16,3 mil milhões de anos. Assim, é normal adoptar o valor intermédio, 14 mil milhões de anos, como uma ordem de grandeza da idade do universo. Foi com base neste cálculo aproximado, que foi afirmado que as manchas de anisotropia descobertas nos anos 90 pelo satélite COBE, como se discutirá mais adiante, se situam a uma distância de 15 mil milhões de anos-luz. Veremos que se estava a cometer um erro grosseiro de avaliação de distâncias por não se ter devidamente em conta a própria expansão do espaço. Deve-se notar que o valor de H varia no tempo (em geral decresce), e a idade do universo não só depende de H mas também do modelo teórico utilizado.

 

A descoberta de E. Hubble em 1929 – um universo dinâmico em expansão – foi sem dúvida uma das maiores descobertas do século. Na altura, já a teoria da relatividade geral de Einstein tinha produzido os modelos teóricos capazes de descrever um universo em expansão. Mas só nos finais dos anos 40 foram essas ideias levadas  até às suas últimas consequências por George Gamow e seus colegas Ralph Alpher e Robert Herman, os quais previram a existência de uma radiação cósmica em equilíbrio térmico, banhando uniformemente o universo com uma temperatura de aproximadamente 5 kelvin (5 graus acima do zero absoluto ou cerca de -268 graus Celsius), relíquia de uma época em que o universo era muito quente e denso. Nasceu assim o modelo hoje conhecido por Big Bang quente.

 

A radiação electromagnética de origem cósmica, no domínio das micro-ondas, prevista pelo Big Bang, seria descoberta em 1965 quase acidentalmente por Arno Penzias e Robert Wilson, quando tentavam descobrir a origem de um ruído de fundo misterioso na sua antena de radio, e identificada um ano mais tarde por Robert Dicke e James Peebles. Desde então têm sido realizadas inúmeras observações para determinar rigorosamente o espectro da radiação cósmica de fundo de micro-ondas (RCF), para saber se se trata de uma radiação isotrópica (ideal) tipo corpo negro, e obter com precisão a sua temperatura característica. Essas observações confirmaram os resultados iniciais de Penzias e Wilson: fixaram o valor da temperatura efectiva em 2,73 K e mostraram que a radiação era extraordinariamente isotrópica: quando se observa a radiação em diferentes direcções concluímos que as variações de temperatura são inferiores a 0,0001 do grau Celsius. Este resultado constituiu a prova mais sólida a favor do modelo do Big Bang.

 

A outra previsão notável deste modelo é a relação entre o hélio (He) e o hidrogénio (H) existentes no universo, e  a nucleosíntese cósmica dos outros elementos leves.  A teoria do Big Bang diz-nos que o universo primitivo é um lugar muito quente que arrefece à medida que se expande. A temperatura da radiação RCF representa a temperatura do universo actual. Um segundo após o Big Bang, o universo tinha uma temperatura cerca de 10 mil milhões de graus e estava cheio de um mar de neutrões, protões, electrões, fotões, neutrinos e suas anti-partículas. À medida que o universo arrefece, os neutrões ou decaiem em protões e electrões ou combinam-se com protões para formar deutério (um isótopo do hidrogénio).  Durante os primeiros três minutos do universo, a maior parte do deutério combina-se para formar He. Alguns vestígios de lítio foram também produzidos nessa altura. Este processo de formação dos elementos leves no universo primitivo é conhecido por nucleosíntese do Big Bang (NBB). O termo nucleosíntese refere-se à formação de elementos mais pesados, núcleos atómicos com mais protões e neutrões, a partir da fusão dos elementos mais leves.

 

A abundância prevista para o deutério, hélio e lítio depende da densidade de massa-energia de materia ordinária no universo primitivo, como se vê na figura junta.  Estes resultados indicam que a produção de hélio é relativamente insensível à abundância de matéria ordinária, acima de um certo limiar. É de espera que genericamente cerca de 24% da matéria ordinária no universo seja proveniente da produção de He no Big Bang. Isto está em muito bom acordo com as observações e é um dos grandes triunfos do modelo do Big Bang. É possível, no entanto, submeter o Big Bang a testes mais delicados. Em particular, para que as produções previstas de outros elementos leves estejam de acordo com as observações, a densidade de massa-energia global deve representar cerca de 4% da densidade crítica, isto é, do valor da densidade total (matéria ordinária+”matéria escura”+ “energia escura”) correspondente ao modelo plano. O satélite Wilkinson Microwave Anisotropy Probe (WMAP), lançado a 30 de Junho de 2001, deve ser capaz de medir directamente a densidade da matéria ordinária e comparar os valores observados com os previstos pela NBB.

 

Desde 1917 que Einstein se deu conta que, a uma escala cosmológica, o efeito cumulativo da curvatura do espaço podia tornar-se tão grande que alteraria a sua topologia. Se a curvatura de uma superfície é sempre para o mesmo lado e aproximadamente igual por toda a parte, o espaço acaba por se fechar sobre si próprio, como no caso de uma superfície esférica. Embora numa região suficientemente pequena as propriedades geométricas da superfície esférica não sejam muito diferentes das do plano, a estrutura global é claramente diferente – a esfera é, como sabemos, uma superfície com uma área finita, embora não possua qualquer fronteira. Como consequência, é possível tomar o caminho mais curto entre dois pontos (geodésica) e seguir sempre em frente até regressar ao ponto de partida pelo sentido oposto. O modelo de Einstein para o universo era o análogo tri-dimensional da superfície esférica. Contudo, existem outros espaços uniformes tri-dimensionais como o espaço hiperbólico, de curvatura negativa, e o espaço euclideano sem curvatura. A determinação da natureza global do espaço é uma das tarefas mais importantes da cosmologia moderna. Porém, a porção do universo acessível aos maiores telescópios fixos na Terra, ou aos telescópios espaciais, como é o caso do Hubble, é demasiado pequena para revelar a estrutura global directamente. Para esclarecer este enigma é necessário usar uma combinação de teoria e de observação.

 

A geometria e a evolução do universo são determinados pelas contribuições parciais dos vários tipo de matéria-energia. Como tanto a densidade de enrgia como a pressão contribuem, em relatividade geral, para a intensidade do campo gravítico (curvatura do espaço-tempo), os cosmólogos classificam os vários tipos de matéria-energia pela sua equação de estado, ou seja, pela relação entre a pressão e a densidade de energia. Daqui resulta a seguinte classificação:

  • Radiação: composta de partículas sem massa ou quase sem massa, isto é, partículas que se movem quase à velocidade da luz e para as quais a sua energia cinética é claramente maior que mc2. Exemplos são os fotões (luz) e neutrinos. Esta forma de matéria é caracterizada por possuir uma grande pressão positiva.
  • Matéria  barionica: é a “matéria ordinária” de que somos feitos, constituída por protões, neutrões e electrões. Admite-se que esta forma de matéria tem uma pressão desprezável do ponto de vista cosmológico.
  • Matéria escura: matéria “exótica” não-bariónica que interactua fracamente com a  matéria ordinária. Embora esta matéria não tenha nunca sido directamente observada no laboratório existem bons motivos para suspeitarmos da sua existência há já algum tempo. Esta forma de matéria também não tem uma pressão significativa do ponto de vista cosmológico.
  • Energia escura: esta é uma forma de matéria particularmente misteriosa, ou talvez seja uma propriedade do próprio vácuo, caracterizada por uma pressão negativa muito grande. Em lugar de ter uma acção atractiva esta forma de matéria tem um carácter repulsivo e, por isso, pode ser responsável por uma expansão acelerada do universo, se dominar sobre as outras formas de matéria.

     

Um dos grandes desafios da cosmologia actual é o de determinar as densidades de energia relativas e totais de cada uma destas formas de matéria, uma vez que isso é essencial para compreender a evolução e o destino do nosso universo.  Segundo os dados actuais, a matéria ordinária representa uma pequena porção do universo, 4%. A chamada “matéria escura fria” contribui com 23% e a “energia escura”, a mais exótica de todas as contribuições, 73%.  Uma das formas de explicar a existência desta energia escura é por intermédio da constante cosmológica introduzida por Albert Einstein, que aparentemente também escrevia direito por linhas tortas.

 

Os nossos conhecimentos de astronomia não sugeriam, antes dos anos 60, situações no universo onde a gravidade fosse suficientemente intensa para produzir espaços-tempo fortemente curvos, representando por isso campos gravitacionais intensos onde as previsões da teoria da relatividade pudessem diferir fortemente da teoria de Newton. Mas apesar da actual densidade de matéria no universo ser muito pequena – cerca de uma massa solar por mil milhões de anos-luz cúbicos – o universo é muito grande e toda a matéria nele existente contribui cumulativamente para a curvatura do espaço-tempo, dando assim lugar a consequências cosmológicas importantes. Os actuais telescópios permitem observar distâncias da ordem de mil milhões de anos-luz, ou seja, uma distância igual a 9,46×1024 m num espaço plano. Mas quando falamos de universo observável referimo-nos a todos os locais do universo que nos poderiam ter influenciado desde o Big Bang, e portanto esse universo observável é certamente finito, mesmo que o universo seja infinito, dado que a velocidade máxima de transporte da informação, a velocidade da luz no vácuo, é finita. As observações mais recentes, produzidas pelo WMAP, indicam que a idade actual do universo é cerca de 13,7 mil milhões de anos, poderíamos pensar que a fronteira do universo observável, conhecida por horizonte de acontecimentos cósmico (horizonte de partícula), estaria a cerca de 13,7 mil milhões de anos-luz, visto que a radiação que nos chega do universo primordial está a viajar há cerca de 13,7 mil milhões de anos à velocidade da luz. Na realidade, como o universo se tem expandido continuamente desde o Big Bang – a origem da energia do espaço e do tempo – com velocidades muito superiores à velocidade da luz, a fronteira do horizonte é muito maior e foi estimada em 78 mil milhões de anos-luz, o qual representa o “raio” do universo actualmente observável. Daqui se deduz que o universo tem pelo menos um diâmetro de 156 mil milhões de anos-luz.  E, portanto, a distância às flutuações de anisotropia, detectadas pelo COBE e também pelo WMAP, é de cerca de 78 mil milhões de anos-luz e não de 15 mil milhões de anos-luz, como se disse. Confuso? Pois bem, para perceber este raciocínio imagine o universo como era um milhão de anos após o Big Bang. Nessa altura o universo era cerca de mil vezes mais pequeno do que é hoje. Se a luz viajasse nessa altura durante um ano de modo a cobrir uma distância de um ano-luz, essa distância ter-se-ia convertido agora, com a expansão, em mil anos-luz. Por isso quando a expansão é tomada em consideração o universo observável é maior do que se esperaria de uma simples multiplicação da idade do universo pela velocidade da luz.

 

Os modelos cosmológicos contemporâneos baseiam-se na ideia de que o universo é essencialmente o mesmo por toda a parte: uma ideia muitas vezes conhecida por princípio cosmológico. Este foi aliás o ponto de partida de Einstein ao tecer as suas considerações cosmológicas, embora na altura em que o fez não havia a certeza da existência de outras galáxias exteriores à Via Latcea, e for isso Einstein considerou um fluido cósmico constituído por uma distribuição uniforme de estrelas. Por isso o cosmólogo de Princeton James Peebles afirmou: “Muitas vezes espanto-me como Einstein foi capaz de fazer uma hipótese tão singela ... o universo é tão simples que podemos analisá-lo a partir de uma única equação diferencial – onde todas as variáveis são funções exclusivas do tempo. Claro que Einstein tinha uma intuição brilhante, e certamente estava muito perto da verdade – essa é forma como visualizamos o universo.” Efectivamente, as observações hoje mostram que a uma escala maior que 100 Mpc, o universo apresenta-se sensivelmente o mesmo em todos pontos (homogéneo) e em todas as direcções (isotrópico).

 

Neste quadro, é pois razoável assumir que a geometria do espaço-tempo que melhor descreve as observações é uma geometria espacialmente homogénea e isotrópica, pelo menos a uma larga escala. Esta hipótese permitiu que a geometria dos modelos cosmológicos seja muito mais simples do que a maioria das outras situações onde se aplica a relatividade geral. Mas devemos reconhecer que para alguns cosmólogos ainda não existem dados observacionais suficientes para assumir a homogeneidade global e a isotropia do universo. Sabemos, por exemplo, que o universo é bastante heterogéneo a escalas inferiores a 100 Mpc. Porém, a quase homogeneidade da radiação de fundo na zona do raios-X, a contagem de fontes de rádio distantes, e os limites na anisotropia da radiação cósmica de fundo na zona das micro-ondas fornecem pelo menos uma evidência circunstancial de que a distribuição de matéria a grandes escalas é aproximadamente homogénea.

 

Ora, a uniformidade da radiação de fundo cósmico, vinda de todas as direcções do espaço, sugere que, a uma larga escala, o universo é isotrópico em torno de nós. Se assumirmos que a nossa posição não é privilegiada (como se assume com o princípio cosmológico), concluímos que o Universo deve ser isotrópico em todos os pontos do espaço; e como a isotropia em todos os pontos do espaço implica a homogeneidade espacial, somos assim conduzidos naturalmente aos modelos espacialmente homogéneos e isotrópicos das equações de Einstein, também conhecidos por soluções de Friedmann-Lemaître-Robertson-Walker (FLRW), que congregam todas as possíveis soluções de Big Bang com diferentes geometrias espaciais, consoante o conteúdo material cósmico.

 

Como a velocidade da luz é a mesma em todas as direcções, e supomos que o universo se expande isotropicamente, então nós estamos sempre colocados no centro do universo observável, embora admitamos que a nossa posição não seja privilegiada (princípio Cosmológico) e por isso o universo não tem centro. O Big Bang é pois um  modelo de um universo espacialmente homogéneo e isotrópico.

As anisotropias da RCF e a formação de galáxias

A missão do COBE foi cuidadosamente planeada em função da nossa compreensão do universo. Em Janeiro de 1990, dois meses após o início da sua missão, o COBE tinha já coberto 75 % do céu e obtido um valor bastante preciso para a temperatura efectiva da RCF (T=2,735 K), mas não tinha ainda detectado quaisquer sinais de anisotropia. Sabia-se que a sensibilidade do COBE aumentaria de um factor 10 perto do fim da missão e finalmente em 1992 chegaram os resultados surpreendentes que confirmam grosso modo as ideias chave do modelo do Big Bang. Em particular, o COBE mediu a temperatura da radiação RCF com quatro algarismos significativos no valor de 2,728±0,002 K, e mostrou que se trata do mais perfeito corpo negro alguma vez estudado. Estas descobertas permitiram afirmar sem qualquer dúvida que a radiação RCF é o “eco” do Big Bang. Mas há mais: estudando a variação dipolar da temperatura da radiação RCF através do céu, o COBE determinou a velocidade da Terra em relação ao referencial cósmico onde a radiação e as galáxias “típicas” estão em repouso com uma precisão de 1%. Finalmente, o COBE também detectou pequenas variações (cerca de 0.001%) na intensidade da radiação RCF proveniente de direcções diferentes segundo ângulos de 10 graus ou maiores – as referidas anisotropias da RFC.

Ao medir pequenas variações da temperatura da radiação cósmica de fundo, da ordem dos 30 milionésimos do grau Celsius, o COBE registou os sinais deixados nessa radiação por pequenas flutuações de temperatura no plasma cósmico, formadas cerca de 400 000 anos após o Big Bang, que se situam nos confins do espaço, a cerca de 14 mil milhões de anos-luz. É presumível que essas flutuações de densidade correspondam a concentrações de matéria aglutinadas pela gravidade para formar as galáxias e os enxames de galáxias que hoje observamos. Trata-se da maior e da mais antiga das estruturas alguma vez observadas. Essas manchas de “anisotropia” no brilho da radiação de fundo estendem-se ao longo de uma tira de dimensões colossais, ao pé da qual a “Grande Muralha" de galáxias, descoberta por Margaret Geller e John Huchra em 1989, com cerca de 500 milhões de anos-luz, é uma estrutura quase insignificante. A maior dessas manchas cobre um terço do universo conhecido, ou seja mais de 3 biliões de anos-luz.

Estas flutuações de temperatura estão relacionadas com flutuações de densidade da matéria no universo primitivo e por isso contêm informação acerca das condições iniciais para a formação das estruturas cósmicas tais como as galáxias, enxames de galáxias e vazios. A existência dessas manchas de anisotropia, devidas a flutuações de temperatura, era um requisito indispensável para explicar a formação de estruturas num universo espacialmente homogéneo e isotrópico, como é o modelo do Big Bang. Um dos maiores obstáculos à aceitação deste modelo era precisamente a sua incapacidade para produzir as condições necessárias para a formação de galáxias. Concretamente, parecia difícil conciliar a hipótese teórica de uma grande uniformidade a uma larga escala e a necessidade de concentrações de matéria suficientes para resistir à expansão do universo e dar lugar à formação de estruturas. Ultrapassado este obstáculo, foi possível assegurar a predominância deste modelo no quadro das teorias que procuram explicar a origem e evolução do cosmo. O COBE foi construído para observar as estruturas maiores, e por isso tinha uma resolução de angular maior do que 7 graus no céu, ou seja, uma abertura equivalente a 14 vezes a dimensão aparente da Lua. Para pesquisar as estruturas mais pequenas, correspondentes aos aglomerados e superaglomerados de galáxias, os astrofísicos e cosmólogos contavam com detectores colocados no Polo Sul e instrumentos lançados em balões-sonda na estratosfera.

A partir de Junho de 2001 passaram a dispor também do WMAP, que entretanto permitiu fazer um mapa das flutuações de temperatura da RCF com muito maior resolução, sensibilidade e rigor do que o COBE (ver figura acima). A nova informação contida nestas flutuações mais finas esclarece algumas questões cosmológicas fundamentais e apoia de uma forma mais sólida o modelo de Big Bang modificado com a ideia da existência de uma fase inflacionária ocorrida no universo primitivo (cerca de t=10-35 s após o Big Bang). Uma das previsões da inflação cosmológica relaciona-se precisamente com as flutuações de densidade para pequenas e grandes estruturas. As manchas observadas pelo COBE já estavam de acordo com essas previsões, e as observações do WMAP, que incidem sobre estruturas mais pequenas, também parecem indicar uma grande concordância com esse modelo.

Paulo Crawford
Departamento de Física da FCUL